TU ÉS O GLORIOSO – 30
Por Auriel de Almeida – Historiador
Botafogo e Vasco protagonizam um clássico marcado pela amizade e respeito. E foi contra o clube da Cruz de Malta que o Glorioso realizou sua primeira partida no futebol profissional, no ano de 1934, em um período marcado pela divisão dos grandes clubes da cidade em duas ligas rivais.
Curiosamente a cordialidade entre os alvinegros, ainda presente entre as torcidas, vinha de outra cisão: a de 1924, que misturou de forma confusa elitismo com defesa do amadorismo. No ano seguinte, os esforços diplomáticos botafoguenses foram essenciais para recolocar o Vasco entre os grandes clubes.
Voltando à década de 30: há muito o futebol dos grandes centros havia perdido o espírito do amadorismo, inaugurador do esporte no país. Embora seja injusto dizer que todos os clubes e atletas do Campeonato Carioca eram profissionais, a realidade nos principais grêmios da cidade a partir da década de 20 era bem clara: jogadores recebiam salário para defender o time, fosse sob o disfarce de atividades secundárias no clube ou com contratos de fachada em estabelecimentos de sócios mais influentes. E o Botafogo não fugia à regra.
Em 1932 o movimento pela oficialização do profissionalismo começou a ganhar força no país, mas encontrou um sério antagonista – a Confederação Brasileira de Desportos. O que de início parecia uma disputa entre os princípios românticos do amadorismo e a modernidade inevitável do regime remunerado logo ganhou contornos políticos, tornando-se uma mera disputa por poder. E em 1933 deu-se a cisão generalizada nos principais centros esportivos do país, que viram seus clubes se separarem em amadores e profissionais.
No Rio, a princípio, ficaram do lado da tradicional AMEA, a filiada carioca oficial da CBD, Botafogo, Flamengo e São Cristóvão. Os clubes Vasco, Bangu, America e Fluminense, por sua vez, abandonaram a oficialidade e fundaram a Liga Carioca de Football (LCF), entidade independente (ou "pirata", para seus detratores), e esta tomou parte, ao lado das respectivas ligas não oficiais de outros estados, da fundação da Federação Brasileira de Football (FBF), que se pretendia a rival profissional da CBD. E o público do Rio de Janeiro viu em 1933 dois campeonatos distintos serem disputados na cidade.
Após algumas rodadas da competição oficial carioca, Flamengo e São Cristóvão também abandonaram a AMEA, deixando o Botafogo como o único grande clube do país a apoiar a CBD. E por mais que o Glorioso possuísse o melhor time da época – a ponto de conseguir sustentar a Seleção Brasileira na Copa do Mundo – e que a FIFA se mantivesse ao lado da veterana entidade, a situação da CBD tornou-se insuportável. Parecia que a profissional FBF venceria a batalha, conforme previa a imprensa esportiva.
Mas o jogo começou a virar em fins de 1934, quando os cartolas cebedistas deixaram a miopia de lado e perceberam que não só o profissionalismo era uma realidade incontornável como a vitória da CBD estava o tempo todo em suas mãos. A posição de filiada oficial da FIFA era um grande trunfo, e os clubes da FBF, ilegais, sofriam com a impossibilidade de realizar amistosos com grandes equipes estrangeiras, alinhadas com a entidade máxima do futebol mundial. E assim que a CBD aceitou a remuneração de atletas, seus ex-filiados voltaram em massa. A pacificação total só não foi imediata porque determinados clubes, que ganharam grande poder no comando da entidade rival, resolveram bater o pé e sustentar a cisão, expondo que por trás do discurso de moralização esportiva existiam interesses não tão nobres assim.
No Rio de Janeiro, Botafogo e Vasco, justamente os campeões das entidades rivais, passaram a tratar da fundação da primeira liga profissional oficial da cidade. E os dois clubes, que já mantinham uma antiga relação de amizade, selaram o acordo com um amistoso festivo, disputado em São Januário. Seria o primeiro jogo profissional – oficialmente – do Glorioso.
Jornal do dia seguinte ao clássico
O Jogo
A partida entre alvinegros e cruzmaltinos entusiasmou imprensa e torcida da cidade, afinal, era o retorno do Botafogo às grandes lutas. O time que tinha começado a década de forma arrasadora, conquistando categoricamente as taças de 1930 e 1932 (e deixando 1931 passar, por salto alto), era visto com um pouco de desconfiança pelos títulos de 1933 e 1934, vencidos sobre rivais mais fracos. O jogo contra o Vasco era um tira-teima: o clube estaria despreparado, após dois anos sem rivais à altura, ou os seus consagrados craques ainda tinham a manha das grandes partidas? E em meio a tanta expectativa o estádio ficou lotado.
Antes do apito inicial, muita troca de gentilezas. Os cartolas botafoguenses entraram no estádio em automóveis enfeitados com bandeirolas dos dois times, e foram recebidos com fogos e palmas calorosas da eufórica torcida. Em seguida deram de presente aos rivais uma enorme bandeira cruzmaltina, feita sob encomenda às ordens da diretoria do Botafogo, com quase cinco metros de largura. Debaixo do gigantesco pavilhão, jogadores dos dois clubes correram por todo o estádio, aplaudidos pelo público presente. E para finalizar tantas homenagens, botafoguenses e vascaínos hastearam as bandeiras do Brasil, dos contendores da tarde, e dos paulistas Corinthians e Palmeiras, que como o Vasco da Gama voltavam a apoiar a CBD.
Finalmente iniciada a luta, o clima cordial permaneceu. Botafogo e Vasco fizeram uma partida tranquila, limpa, no mais perfeito sentido da expressão "jogo amistoso", embora sempre buscando a vitória. Em uma cena emblemática, o goleiro Sylvio defendeu uma bola nos pés do vascaíno D'Alessandro, que caiu e pediu pênalti, reclamando muito com o juiz, que nada marcou. Sylvio brincou com o rival, que logo se pôs a rir, e ambos se abraçaram.
A iniciativa do jogo foi toda do Vasco da Gama. O Botafogo parecia mesmo desabituado a grandes adversários, mas conseguia conter com firmeza o ataque rival, mostrando indecisão apenas ao sair para o jogo. O back esquerdo Nariz, recém-contratado do Botafogo, se destacava em sua estreia, ajudando a defesa a impedir que jogadas perigosas de Fausto, D'Alessandro e Gradim terminassem em gol. E quando o Glorioso finalmente se encontrou ofensivamente, passando a pressionar o adversário na metade final do primeiro tempo, abriu o placar. Waldemar tocou para Álvaro, que vinha pela direita, e quando todos pensavam que este avançaria mais um pouco para cruzar passou para Carvalho Leite fuzilar da entrada da área: 1 a 0 para o Botafogo, na última jogada da etapa.
No segundo tempo os times repetiram o roteiro da fase inicial, apenas invertendo os papéis. O Alvinegro começou melhor, com boas performances de Waldemar, Nilo e Patesko, mas a defesa do Vasco agiu com categoria. E quando o Cruzmaltino voltou a crescer no jogo, buscando incansavelmente o empate, só conseguiu o gol na derradeira oportunidade, em ótimo lance de Orlando, que escapou de um adversário na intermediária, avançou em diagonal pela direita e cruzou para Lamana, que venceu a disputa no alto com o goleiro Victor e cabeceou para as redes. Fim de jogo, com um gol para cada equipe.
O empate foi unanimemente considerado justo pelos cronistas, além de um resultado perfeito para um jogo de confraternização. Os dois campeões de 1934 mostravam-se em igualdades de condições, silenciando os detratores da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos – a melhor resposta viria em 1935, quando o Glorioso conquistou o tetra carioca no campeonato que reunia todos os campeões da cisão.
== Ficha técnica ==
Domingo, 9 de dezembro de 1934
Vasco da Gama 1 x 1 Botafogo – Local: Estádio São Januário
Amistoso de profissionais
Vasco da Gama: Rei, Domingos (Brum) e Itália; Gringo, Fausto e Calocero; Orlando, Almir (Kuko), Gradim (Lamana), Nena e D'Alessandro. Técnico: Harry Welfare.
Botafogo: Victor, Sylvio Hoffmann e Nariz; Ariel, Martim (Fernando) e Canalli; Álvaro, Waldemar, Carvalho Leite, Nilo e Patesko. Técnico: Nicolas Ladanyi.
Árbitro: Alderico Solon Ribeiro (DF).
Gols: Carvalho Leite aos 40/1ºT; Lamana aos 40/2ºT.
Público: 15.000 (aproximadamente)
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